Saúde Mental Policial: breve análise psicanalítica

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Erick Guimarães

7/4/202322 min read

O presente artigo discute à luz da psicanálise, e de uma série de conceitos e mecanismos de funcionamento psíquico, o que seria uma operação "natural" do psiquismo humano, e quais possíveis modificações ocorreriam nesse processo de funcionamento em um profissional da segurança pública. À partir de uma abordagem psicanalítica, visa-se fomentar o debate acerca do adoecimento policial com base nas ideias de represamento emocional, carências na educação emocional desses profissionais, e no tabu existente no meio quanto ao assunto saúde mental. Leia ! Garanto que vai gostar.

Vamos nessa...

Por Erick Guimarães

Perito Criminal, Especialista em Políticas e Gestão da Segurança Pública, Criminologia e, Engenharia Ambiental. Professor  há mais de 20 anos, Físico (bacharelado e licenciatura) pela UnB, psicanalista em formação.

Como é o funcionamento “natural” do nosso psiquismo?

Nosso funcionamento psíquico é complexo e envolve diferentes variáveis e dinâmicas inter-relacionadas. Neste artigo, meu objetivo é fazer uma análise breve e simplificada, porém interessante e didática, com intuito de discutirmos um pouco sobre os desafios e consequências psíquicas enfrentadas pelos profissionais da segurança pública. É importante frisar que existem outras abordagens capazes de também servir de base para um entendimento técnico-científico para o tema. Espero com esse artigo fomentar o debate e a busca por soluções, com a consequente quebra do tabu que envolve esse tipo de assunto. Vamos lá!

De maneira geral, podemos dizer que o funcionamento psíquico normal de um ser humano se dá conforme um conjunto de etapas:

1) Ocorre um fato conosco;

2) Este fato provoca um sentimento (afeto ou emoção);

3) Esse sentimento nos cobra (ou impulsiona para) uma ação para aliviá-lo;

- Raiva: cobra ação de destruir algo, cessar a agressão, por exemplo;

- Tristeza: cobra ação de recuperar o que foi perdido, pensamento reflexivo, etc.;

-  Medo: cobra autopreservação diante do perigo, lutar, ou fugir, paralisar etc.

4) Ao realizar esta ação, satisfazemos as necessidades desse sentimento/emoção;

5) Nos sentimos aliviados, pois descarregamos esta “energia psíquica”.

Quando um fato ocorre, ele pode estimular uma série de reações emocionais e cognitivas dentro de nós. Vejamos situações práticas desse funcionamento, com o exemplo da raiva.

Imagine você diante de uma ofensa grave (alguém bate no seu carro, por exemplo). Esse fato desencadeia em você o sentimento de raiva. A raiva é um sentimento intenso de indignação e é comum que ela cobre ações para que sua energia psíquica seja liberada. Nesse caso, a ação que a raiva cobra de você pode ser a de atacar, confrontar o agressor ou buscar uma solução para cessar a agressão/incômodo que lhe foi gerado. Ao tomar essa ação e enfrentar a situação, você pode experimentar um sentimento de alívio, pois a energia da raiva foi liberada e você se sente mais empoderado e protegido.

Agora, vamos falar sobre o medo. Imagine você diante de uma situação de perigo iminente, como um animal selvagem se aproximando de você. Esse fato provoca em você o sentimento de medo, que é uma resposta de alerta do organismo perante uma potencial ameaça. O medo cobra de você a ação de se proteger ou fugir do perigo. Nesse caso, seu corpo pode reagir, liberando adrenalina, aumentando sua atenção e preparando-o para tomar a ação necessária. Ao agir de acordo com o que o medo lhe pede, afastando-se do perigo, você pode experimentar um sentimento de alívio e segurança, pois você se protegeu efetivamente.

E no caso da tristeza? Imagine você vivenciando uma perda significativa, como o término de um relacionamento ou o falecimento de um ente querido. Esse fato provoca em você o sentimento de tristeza, que é uma resposta emocional natural diante de uma experiência dolorosa. A tristeza cobra de você a ação de processar a perda, sentir a dor emocional e buscar apoio e consolo. Nesse caso, ao se permitir vivenciar e expressar a tristeza, você pode passar pelo processo de luto, elaborar suas emoções e encontrar recursos internos e externos para lidar com a situação. Com o tempo, a tristeza tende a diminuir, pois você está realizando as ações que ela cobra e você pode experimentar uma sensação de aceitação e reconstrução emocional.

Percebam?! Este é o nosso funcionamento “natural”. As situações acontecem, provocam-nos emoções, reconhecemos estas emoções e aliviamos sua energia, reencontrando o equilíbrio psíquico novamente.

É importante destacar que cada pessoa vivencia e expressa seus sentimentos de maneira única e as ações correspondentes podem variar, dependendo do contexto e das características individuais. Além disso, é fundamental considerar que nem sempre é possível tomar a ação direta que um sentimento cobra, como em situações de injustiça estrutural, de perdas irreparáveis ou de imposições sociais. Nesses casos, a busca por estratégias adaptativas e formas saudáveis de lidar com as emoções se torna essencial, sob o risco de acumularmos de maneira disfuncional essa energia psíquica por não realizarmos as ações cobradas pelos sentimentos/emoções.

Assim, o funcionamento psíquico normal e saudável envolve a capacidade de reconhecer, expressar e canalizar adequadamente os sentimentos, permitindo que a energia emocional seja processada e liberada de forma construtiva. Cada pessoa é única e pode ter suas próprias nuances em seu funcionamento psíquico. O ponto central é que os sentimentos desempenham um papel importante na nossa vida emocional e têm uma função adaptativa. Eles nos fornecem informações sobre nossas necessidades, limites e desejos, orientando-nos para a ação adequada. Quando somos capazes de reconhecer e expressar nossos sentimentos de forma saudável, estamos mais propensos a lidar efetivamente com os desafios e a buscar o bem-estar emocional.

Mas e quando essas emoções não podem ser expressas? Seja por imposição social (ninguém pode “destruir” um desafeto sem o risco de ser preso, por exemplo) ou porque o sentimento é tão intenso e angustiante que a pessoa simplesmente precisa bloqueá-lo?

Nesse caso, uma das possibilidades que nosso psiquismo fornece é a utilização de mecanismos de defesa do ego, que visam justamente desconectar o fato que ocorreu conosco do sentimento (emoção) associado. Digamos que os mecanismos de defesa têm o poder de nos “dessensibilizar” diante dos fatos que ocorrem. Perceberam aonde quero chegar? A própria natureza do trabalho policial, aliada às expectativas e imagem que a sociedade têm e cobra de nós, contribui muito para que lancemos mão de uma série de mecanismos de defesa para bloquear sentimentos. Um policial, ou profissional de segurança pública, precisa ter contato constante com todos os níveis de dramas, sofrimentos e tragédias de toda natureza, conviver com o que há de pior nas pessoas, sem, muitas vezes, poder expressar isso.

Voltando ao raciocínio: basicamente os mecanismos de defesa visam proteger a consciência das sensações e cobranças feitas pelo sentimento/emoção. Semelhante a uma barreira que impede a conexão do fato com o sentimento. Ao lançarmos mão de uma defesa, bingo! Podemos viver a experiência “sem” sentir o afeto que ela provoca. Não sem consequências, como veremos...

Exemplos de mecanismos de defesa:

- Repressão: envolve suprimir ativamente (de maneira consciente) informações indesejadas, tornando-as inacessíveis à consciência. Por exemplo, uma pessoa pode reprimir memórias de um evento traumático para evitar reviver a dor emocional associada a ele. Da mesma forma, a repressão pode ocorrer em relação a desejos considerados inaceitáveis socialmente, como impulsos agressivos ou sexuais que entram em conflito com as normas e valores pessoais.

- Isolacionismo Extremo: consiste em alterar o estado de consciência para não ter que lidar com estímulos, sentimentos/emoções angustiantes. Por exemplo, um bebê, ao ter contato com um ambiente com muito ruído ou estímulos internos, por se sentir angustiado pode dormir, alterando seu estado de consciência e escapando dessa “realidade” que o perturba. No adulto, a utilização desse mecanismo se apresenta com a utilização do álcool, tabaco, medicamentos e drogas, por exemplo. O indivíduo altera seu estado psíquico para proteger-se do que o angustia.

- Negação: a pessoa se recusa (inconscientemente) a acreditar na existência de algo, mesmo que haja evidências claras e convincentes. É semelhante ao que ocorre na repressão, mas, aqui, ocorre em nível inconsciente, de maneira que a pessoa ignora, literalmente a situação. Faz “cara de paisagem”. Por exemplo, alguém diagnosticado com uma doença grave pode negar a gravidade do diagnóstico e evitar buscar tratamento. Um policial, que mesmo diante de cenas violentíssimas e de extremo sofrimento humano, continua com expressão facial de indiferença, como se aquilo não o atingisse. A ausência de expressão emocional pode não ser “força”, mas negação, percebem? Uma proteção inconsciente do indivíduo.

Existem inúmeros outros mecanismos de defesa do ego. Para os propósitos deste artigo, citarei apenas esses três, mas, em breve, esmiuçarei mais o tema, por meio de novas discussões e análises interessantes à luz desse tipo de conhecimento.

Percebam então que já começamos a notar que a imagem mítica de um policial forte, que não demonstra sentimentos, nem expressões de emoções diante das mais terríveis tragédias, na verdade não se trata de uma pessoa “forte”, mas, talvez, de um indivíduo em sofrimento psíquico, que lança mão, possivelmente, de maneira excessiva, de mecanismos de defesa como negação para proteger-se. Essa própria figura mítica policial, muitas vezes assim retratada em filmes, costuma ter uma característica típica, não é?

Consumo excessivo de álcool, cigarro, etc. Ou seja, o próprio personagem estereotipado, tipo fortão, com cara de mau, visto nos filmes, pelo visto nada mais é do que um indivíduo adoecido psiquicamente, lançando mão em demasia, de forma disfuncional e não saudável, provavelmente, dos mecanismos de negação, isolacionismo extremo e repressão. Grande reviravolta, hein?

Garanto que depois desse artigo você nunca mais olhará pra esse personagem estereotipado da mesma maneira. A propósito, sugiro analisarem o personagem Capitão Nascimento, nos filmes Tropa de Elite. É bem interessante. O que poderíamos aprender com esse personagem?

Qual o problema do uso excessivo e disfuncional de mecanismos de defesa, não permitindo o reconhecimento, correta expressão e experiência de sentimentos/emoções? Que consequências o represamento psíquico traz ao profissional de segurança pública?

Em alguns casos, pode ocorrer um desequilíbrio no funcionamento psíquico. Por exemplo, reprimir ou negar certos sentimentos pode levar ao acúmulo de tensão emocional, ansiedade e até mesmo a manifestações indiretas e inesperadas desses sentimentos reprimidos. Freud dizia que “as emoções não expressas nunca morrem. Elas são enterradas vivas e saem de piores formas mais tarde”. Raiva não expressa pode acumular-se e sair, de maneira abrupta, por exemplo, em contextos completamente diferentes da situação que as gerou.

Quem nunca na Polícia tomou conhecimento sobre aquele sujeito que sempre foi tranquilo e de repente, em um conflito bobo no trânsito, surtou, sacou uma arma e matou o outro motorista por conta de um retrovisor quebrado? Essas coisas acontecem o tempo todo, não vê quem não quer ou não recebeu educação emocional. Não será nosso caso, sem dúvida, visto que este artigo trata, de certa forma, exatamente disso. Estamos ampliando nossa inteligência emocional a partir do aprendizado sobre o funcionamento psíquico humano.

Se uma pessoa se sente constantemente sobrecarregada por emoções intensas e não consegue encontrar maneiras saudáveis de lidar com elas, isso também pode indicar um desequilíbrio no funcionamento psíquico.

Um funcionamento psíquico normal e saudável não significa que nunca experimentaremos sentimentos negativos ou que sempre tomaremos ações diretas e imediatas em resposta a esses sentimentos. Faz parte da nossa humanidade passar por uma variedade de emoções e às vezes é necessário um tempo de reflexão e processamento antes de agir. O importante é encontrar maneiras saudáveis de lidar com nossas emoções, buscando apoio, expressando-nos de forma construtiva e encontrando estratégias adaptativas para enfrentar os desafios da vida.

Represar e empurrar sentimentos para o inconsciente, embora possa parecer uma estratégia útil para evitar o desconforto emocional imediato, pode ter consequências negativas para a saúde mental e o bem-estar em longo prazo. Vejamos alguns problemas associados à repressão de sentimentos:

1. Acúmulo de tensão emocional: quando reprimimos repetidamente certos sentimentos, a energia emocional associada a esses sentimentos não é liberada adequadamente. Com o tempo, essa energia emocional acumulada pode se transformar em estresse, ansiedade, irritabilidade ou até mesmo manifestações físicas (somatizações), como tensão muscular, dor de estômago e problemas de sono.

2. Dificuldade de autoconhecimento: a repressão sistemática de sentimentos pode criar uma desconexão entre a pessoa e suas emoções. Isso pode dificultar o autoconhecimento, a compreensão de si mesmo e a identificação de suas verdadeiras necessidades e desejos. A falta de consciência emocional pode levar a um sentimento de vazio ou confusão sobre quem se é.

3. Impacto nos relacionamentos: o represamento de sentimentos também pode ter um impacto negativo nos relacionamentos interpessoais. Quando não expressamos adequadamente nossas emoções, é mais difícil nos conectarmos com os outros de maneira autêntica. Pode levar a dificuldades na comunicação, à falta de intimidade emocional e até mesmo a explosões emocionais inesperadas.

4. Manifestações indiretas: embora os sentimentos represados possam estar fora da consciência, eles ainda exercem influência velada sobre nosso comportamento. Muitas vezes, esses sentimentos encontram maneiras indiretas de se expressar, como por meio de sintomas físicos, comportamentos compulsivos, agressividade ou sabotagem de metas pessoais.

5. Impacto na saúde mental: a repressão prolongada de sentimentos pode contribuir para o desenvolvimento de problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade, transtornos alimentares e vícios. Negar ou reprimir emoções difíceis pode levar a um aumento do sofrimento emocional e dificultar o acesso aos recursos de enfrentamento adequados.

No caso da raiva, que na Polícia é comum de ser fomentada, devido a própria natureza do trabalho e limitações sociais/institucionais, merece uma atenção especial. Vejamos...

A repressão crônica e intensa da raiva pode ter várias consequências negativas para a saúde emocional e mental do servidor. Quando a raiva é constantemente represada e não é expressada ou processada de maneira saudável, pode levar a problemas significativos, como comportamentos destrutivos, suicídio e automutilação. A raiva não cobra a ação de destruir? Quando não se pode destruir o que está de fora, ela se volta para a destruição do que está dentro. Lembra muita coisa aos policiais, não é? Aqui estão algumas razões pelas quais isso pode ocorrer:

1. Acumulação de tensão emocional: a raiva é uma emoção natural e normal que surge em resposta a situações de frustração, injustiça ou provocação. Quando a raiva é represada repetidamente, essa energia emocional pode se acumular ao longo do tempo, resultando em uma tensão emocional cada vez maior. Essa tensão pode se tornar insustentável, levando a explosões de raiva desproporcionais ou a comportamentos impulsivos e destrutivos.

2. Desequilíbrio emocional: a repressão crônica da raiva pode levar a um desequilíbrio emocional, onde a pessoa pode se sentir constantemente irritada, ressentida ou frustrada. Isso pode afetar negativamente sua capacidade de lidar com o estresse e desencadear reações desproporcionais em situações cotidianas. Comportamentos destrutivos, vícios, podem surgir como uma tentativa inadequada de liberar a raiva reprimida.

3. Autoagressão e automutilação: em alguns casos, a repressão crônica da raiva pode levar a sentimentos de desesperança, impotência e frustração, que podem resultar em comportamentos autodestrutivos, como automutilação. Esses comportamentos podem surgir como uma maneira equivocada de aliviar a dor emocional, mesmo que temporariamente. É importante ressaltar que a automutilação não é uma solução saudável ou eficaz para lidar com a raiva e que a busca de ajuda profissional é essencial nessas situações.

4. Risco aumentado de ideação suicida: a repressão crônica da raiva também pode estar relacionada a um risco aumentado de ideação suicida. A raiva reprimida pode gerar um sentimento de desesperança e desamparo, levando a pensamentos negativos e autodestrutivos. É fundamental reconhecer os sinais de ideação suicida e buscar ajuda imediatamente em casos de emergência.

A expressão saudável da raiva é fundamental para o bem-estar emocional. Aprender a reconhecer, aceitar e expressar a raiva de maneira construtiva, seja por meio da comunicação assertiva, da prática de técnicas de gerenciamento do estresse ou do apoio terapêutico, pode ajudar a evitar as consequências negativas associadas ao represamento crônico da raiva. Se você ou alguém que você conhece está lidando com problemas de raiva ou pensamentos suicidas, é fundamental buscar ajuda de um profissional de saúde mental o mais rápido possível. Vimos aqui que não é achismo, nem motivo de tabu. Trata-se de um funcionamento inadequado do nosso psiquismo, que não deve ser motivo de vergonha. Você é valioso(a). Cuide-se.

Na realidade exigente e desafiadora da profissão policial, o represamento emocional pode ter consequências profundas e devastadoras para a saúde mental e física dos agentes. O policial frequentemente se depara com situações estressantes, traumáticas e perigosas, as quais a raiva, a tristeza e o medo são respostas emocionais naturais. No entanto, quando esses sentimentos são inadequadamente reprimidos, as consequências podem ser avassaladoras.

A raiva, que muitas vezes surge diante da injustiça e da violência presenciada, quando reprimida, transforma-se em um fogo abrasador que consome a mente e o corpo do policial. A energia não expressada da raiva se acumula, resultando em uma pressão interna insustentável. A longo prazo, essa repressão pode levar a explosões emocionais incontroláveis ou, paradoxalmente, a uma apatia letárgica. A depressão pode se instalar silenciosamente, deixando o policial vazio e sem esperança, perdendo a motivação para enfrentar os desafios diários da profissão.

A tristeza, outro sentimento essencial, é frequentemente negada em uma tentativa de manter a imagem de força e coragem. No entanto, o represamento da tristeza é como ácido na alma policial, corroendo sua vitalidade e sua resistência emocional. O peso das experiências traumáticas não processadas cria uma tristeza profunda e debilitante, que se infiltra em cada aspecto da vida. A saúde física também sofre, com problemas de estômago se manifestando como úlceras ou distúrbios gastrointestinais, refletindo o fardo emocional não expresso.

O medo, uma emoção natural e até mesmo essencial para a autopreservação, pode se tornar um inimigo quando reprimido. O medo não enfrentado se transforma em ansiedade paralisante, uma sombra que paira constantemente, tornando cada situação potencialmente perigosa uma fonte de terror. A ansiedade consome a energia vital, levando a sintomas físicos como palpitações, dores de cabeça e insônia. A capacidade de desempenhar efetivamente o trabalho é prejudicada, com a atenção fragmentada e a capacidade de tomar decisões rápidas e precisas afetada negativamente.

E os vícios, comuns na Polícia? Onde entram nesta análise?

Essa resposta já está praticamente dada após aprendermos sobre o mecanismo de defesa isolacionismo extremo. Digamos que, na segurança pública (e na sociedade como um todo, por que não?!), a utilização deste mecanismo de defesa via consumo de álcool e substâncias como paliativo para as angústias e estresses diários, é relativamente comum, certo? Vamos analisar...

O uso de álcool e drogas pode ser uma forma de lidar com o represamento de sentimentos e emoções difíceis. Basicamente seria lançar mão do mecanismo de isolacionismo extremo, quando se altera o estado de consciência do indivíduo com intuito de desconectar fatos de emoções angustiantes, utilizando substâncias que alteram a bioquímica cerebral.

Quando uma pessoa represa suas emoções, pode experimentar um acúmulo de tensão emocional, estresse e desconforto interno. O uso de substâncias como álcool e drogas pode oferecer um escape rápido e temporário dessa dor emocional.

Ao consumir álcool ou drogas, principalmente aqueles depressores do sistema nervoso, pode-se experimentar uma sensação de alívio emocional momentâneo, via alteração do estado de consciência. As substâncias podem parecer proporcionar uma fuga da realidade, amortecendo a dor e reduzindo a ansiedade. No entanto, é importante destacar que esse alívio é temporário e, em longo prazo, o uso de substâncias para lidar com a repressão de sentimentos pode levar a consequências negativas. Junto à alteração psíquica desejada, vem também alterações metabólicas e bioquímicas perigosas, seja a substância legal ou ilegal.

A dependência química pode se desenvolver quando uma pessoa usa álcool ou drogas como uma forma constante de evitar lidar com suas emoções. Pode resultar em um ciclo vicioso, compulsivo, onde a pessoa se torna cada vez mais dependente da substância para regular seu estado emocional, ao mesmo tempo em que o represamento emocional continua.

O uso excessivo de álcool e drogas pode levar a problemas de saúde física e mental, prejudicar relacionamentos, causar dificuldades financeiras e interferir nas responsabilidades diárias. A insistência no represamento de sentimentos pode levar à persistência do uso dessas substâncias, tornando o processo de recuperação mais desafiador.

É importante destacar que, quando a pessoa busca ajuda para lidar com a repressão de sentimentos e suas consequências, é possível explorar estratégias mais saudáveis e eficazes para lidar com as emoções difíceis. A terapia, por exemplo, pode ser um recurso valioso para aprender a reconhecer, expressar e processar os sentimentos reprimidos, sem recorrer ao uso de substâncias como forma de fuga ou alívio.

É crucial reconhecer a importância de lidar de forma saudável e apropriada com as emoções para nós, policiais. Negar, reprimir, ou disfarçar com drogas esses sentimentos não os faz desaparecer, mas sim aumenta seu poder destrutivo. É fundamental buscar apoio emocional e profissional, um ambiente seguro para expressar e processar essas emoções. Somente por interferência da conscientização e cuidado emocional adequado podemos proteger aqueles que se dedicam a proteger os outros, ajudando-os a superar as consequências nefastas do represamento emocional e a restaurar a saúde e o bem-estar que tanto merecem. Vidas policiais importam!

E as várias formas de assédio sofridos e enfrentados no ambiente da segurança pública? Qual seria sua contribuição ou influência de acordo com essa perspectiva?

Assunto espinhoso esse, mas não estamos aqui para mascarar nem fugir de problemas. Conforme aprendemos no processo terapêutico, só dispomos, verdadeiramente, do livre-arbítrio, quando encaramos de frente nossos problemas e questões, esmiuçando nos mínimos detalhes toda sua amplitude e impacto negativo em nós. Apenas tateando a ferida, percebendo até onde se estende a dor, nos permite reconhecer o problema e a partir daí, decidirmos se vamos permanecer no adoecimento, nos erros, ou se vamos ter a coragem de mudar de postura e partir para um processo de cura.

Eu escolhi o processo de cura, doa a quem doer, então vamos analisar essas questões com calma, responsabilidade, muita empatia e vontade de contribuir de maneira efetiva para incentivar o debate e busca por soluções. Vamos lá !

Existem várias formas de interpretar o impacto emocional que o assédio moral e sexual pode causar no psiquismo humano. É um fenômeno complexo, impossível de ser analisado em toda sua extensão apenas aqui. Dentro da nossa abordagem nesse artigo, simplificada, e à luz dos conceitos e desenvolvimentos apresentados, vejamos.

Ser vítima de assédio moral pode ter um impacto significativo na saúde mental de uma pessoa. O assédio moral envolve comportamentos abusivos, humilhantes, repetitivos e intencionais que visam prejudicar emocionalmente ou desestabilizar a vítima. Essa forma de violência psicológica no ambiente de trabalho ou em outros contextos pode afetar negativamente a saúde mental de diversas maneiras:

1. Repressão de sentimentos: ser vítima de assédio moral pode levar à repressão de sentimentos, especialmente a raiva e o medo. Como? A vítima pode sentir-se insegura em expressar sua raiva em relação ao agressor ou temer as consequências de revidar. Esses sentimentos seriam reprimidos como forma de autoproteção, para evitar mais retaliação ou represálias. O represamento contínuo dessas emoções pode levar a um acúmulo de tensão emocional, ansiedade, raiva e angústia. Eventualmente vimos, por exemplo, que a raiva reprimida, pode voltar-se contra o próprio sujeito, de maneira perigosa.

2. Baixa autoestima e confiança reduzida: o assédio moral pode minar a autoestima e a confiança da vítima. As constantes humilhações e ataques à honra podem fazer com que a vítima comece a duvidar de si mesma, a questionar sua competência e a se sentir desvalorizada. Isso pode resultar em sentimento de impotência, inadequação e autoestima diminuída, o que pode levar ao represamento ainda maior de sentimentos negativos.

3. Isolamento social e sensação de solidão: o assédio moral muitas vezes ocorre em um ambiente de trabalho ou em outros contextos em que a vítima é cercada por colegas ou superiores abusivos. Isso pode levar a um sentimento de isolamento social, uma vez que a vítima pode se sentir excluída, intimidada ou estigmatizada. O medo de represálias ou de ser mal interpretada pode levar a um recuo social, o que pode dificultar ainda mais a expressão e o processamento adequado de sentimentos. A perda ou afastamento de uma rede de apoio por conta do isolamento representa mais um risco no processo de adoecimento psíquico da vítima.

4. Estresse crônico e esgotamento emocional: o assédio moral cria um ambiente altamente estressante e tóxico para a vítima. A exposição constante a abusos e humilhações pode levar ao desenvolvimento de estresse crônico, ansiedade e esgotamento emocional. A vítima pode estar constantemente em alerta, antecipando novos abusos e vivendo em um estado de tensão constante. Esse estresse crônico pode levar ao represamento de emoções e ter um impacto prejudicial na saúde mental e física.

5. Desenvolvimento de transtornos mentais: o assédio moral prolongado e grave pode levar ao desenvolvimento de transtornos mentais, como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade, por exemplo. A exposição contínua a abusos e a falta de apoio e proteção podem levar a consequências psicológicas graves e duradouras.

É essencial que as vítimas de assédio moral busquem apoio e assistência para lidar com a situação. Isso pode incluir o acesso a recursos internos na organização, a busca de orientação jurídica, o envolvimento de um profissional de saúde mental e a criação de uma rede de apoio social. O suporte adequado pode ajudar a vítima a lidar com o represamento de sentimentos, a fortalecer sua saúde mental e a explorar opções para lidar com o assédio e buscar justiça.

Daí a importância de se analisar se hoje as instituições possuem políticas e meios administrativos eficazes para lidar com essa questão. Não apenas do ponto de vista punitivo, mas preventivo, educativo, assistencial e, principalmente, reparativo, pois pelo que vimos, as consequências emocionais e de saúde para as vítimas dessa dinâmica são sérios e perigosos. Diga não ao assédio! Denuncie! Cobre mudanças legislativas e administrativas! Pessoas perdem a vida, ou a qualidade dela, por conta de algumas das dinâmicas e adoecimentos aqui relatados. Não é piada, nem mimimi!

Necessitamos de reformas (legislativas e administrativas) que garantam uma mudança na cultura organizacional e institucional da segurança pública, de maneira a conscientizar as pessoas à respeito dos temas aqui tratados, da importância da educação emocional, da estipulação de limites, do ensino de métodos de gerenciamento mais humano, escalas de trabalho mais humanas, que permitam o contato familiar, convivência comunitária, acesso e construção de uma rede de apoio pro servidor.

É importante salientar, a partir do exposto aqui até agora, que as instituições policiais e de segurança pública são um reflexo da sociedade, reproduzindo muitas vezes as limitações, falta de informação e até a ignorância em relação a esse assunto que também permeiam, de maneira geral, o comportamento da sociedade brasileira. No entanto, apesar de desempenhar, de certa forma, esse papel de espelho, as instituições, principalmente policiais, possuem um papel de referência social, sobre o que é certo e errado. Acredito que devemos frisar esse papel de norte social para demonstrar que não temos compromisso com os erros e imperfeições, e começarmos a reformar e aperfeiçoar nosso funcionamento, para, quem sabe, utilizando esse papel de referência, também provocar mudanças na própria sociedade em relação a este assunto, a partir do nosso exemplo. "Palavras convencem, o exemplo arrasta", não é ?

Precisamos de educação na área de gestão de pessoas para as chefias, do reconhecimento institucional dos impactos negativos e perigosos para a vida e bem-estar de servidores que determinados incentivos e condutas inapropriadas podem trazer. Não se trata de apontar dedos, ou estabelecer uma espécie de caça às bruxas, mas de reconhecer e ter a coragem de levantar a questão em todas as suas nuances e, a partir daí, construir, coletivamente, e de maneira ampla e transparente, novos protocolos de conduta e mecanismos administrativos para lidar com as questões aqui expostas, de maneira técnica, científica, humana, e muito, muito, empática. É no que acredito.

O adoecimento é o mesmo independentemente do cargo, da hierarquia ou dos salários. Temos colegas que vão desde o servidor de menor hierarquia, com atendimento direito ao público, até os cargos mais altos institucionais, adoecendo, vítimas de depressão, ansiedade, etc. Apenas os motivos para o adoecimento mudam, o sofrimento é o mesmo, seja ele causado pela carência de recursos/pessoal, ou do estresse provocado pela articulação política/gerencial. Todos sofremos. Ponto.

Esperar que um profissional da segurança pública não adoeça diante dos contextos vivenciados diariamente, e diante do exposto aqui, é o mesmo que submeter uma criança a maus-tratos, surras e sofrimentos, e assediá-la para não chorar, para engolir o choro diante desses abusos, enquanto se mantém e se intensificam os ataques. Não há psiquismo, nem hipertrofia de mecanismos de defesa, uso de substâncias, nem paliativos capazes de impedir que uma situação tão grotesca leve, inevitavelmente, à muita raiva represada, muito sofrimento e adoecimento. As consequências já sabemos e falamos aqui. São expostas frequentemente no noticiário policial. Pronto, falei!

Finalizando... a primeira parte dessa discussão.

A expressão adequada e saudável das emoções é essencial para o equilíbrio emocional e o bem-estar psicológico. A busca de um ambiente seguro e de apoio, como a terapia, pode ajudar a explorar e processar esses sentimentos reprimidos, promovendo um maior autoconhecimento e crescimento pessoal.

Tudo isso aliado às reformas administrativas e legislativas, utilizando as propostas feitas pela lei 14.531/23, que inclusive, já fiz análise minuciosa aqui: parte 1 , parte 2. Temos o potencial de quebrar esse ciclo vicioso no qual a segurança pública está, com adoecimentos frequentes de seus agentes, de vidas ceifadas. Está na hora de discutirmos essas questões de frente, com coragem, e sem receios. Vidas policiais importam! Cuide-se.

Leia também os artigos abaixo, de minha autoria, relacionados ao tema aqui exposto:

- LEI 14.531/2023: ANÁLISE, REFLEXÕES E PERSPECTIVAS PARA O TEMA SAÚDE MENTAL, EDUCAÇÃO EMOCIONAL PARA A SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL Parte 1

- LEI 14.531/2023: ANÁLISE, REFLEXÕES E PERSPECTIVAS PARA O TEMA SAÚDE MENTAL, EDUCAÇÃO EMOCIONAL PARA A SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL Parte 2

- Terapia para Policiais: Cuidando da Saúde Mental e Fortalecendo a Resiliência

- Estudo americano sobre Suicídio Policial e Reflexões acerca do tema

Referências:

- O Ego e os Mecanismos de Defesa, Anna Freud;

- APVP (Associação Psicanalítica do Vale do Paraíba) – 2017 – MECANISMOS DE DEFESA – João Paulo Kotzent;

- Volpi, José Henrique. Mecanismos de Defesa. Artigo do curso de Especialização em Psicologia Corporal. Curitiba: Centro Reichiano, 2008;

- Rui C. Campos , O Conceito de Mecanismos de Defesa e a sua Avaliação: Alguns Contributos. Revista Iberoamericana de Diagnóstico y Evaluación – e Avaliação Psicológica. RIDEP · Nº50 · Vol.1 · 149-161 · 2019 ISSN: 1135-3848 print /2183-6051online.

-Elizabete Silva, Mecanismos de Defesa do Ego. Trabalho apresentado a Funedi, 2010;

- Rose Nascimento. As Sete Máscaras: Uma análise de perfis de personalidade. 2021.

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Todos merecemos ficar bem, mas, muitas vezes, a ignorância nos afasta do processo

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